Por G. G. Diniz
Qual o modus operandi de se especular sobre o futuro na ficção? Em geral, especulações futuristas surgem da observação atenciosa do presente. Por que o presente é do jeito que ele é? Forças do passado se desdobram, se reinventam, triunfam, perdem. A aleatoriedade, os avanços tecnológicos e a natureza desviam trajetórias, fazem o improvável se tornar real, ou o quase certo se tornar impossível. Entender o presente é a chave para imaginar o futuro.
O Nordeste é uma região brasileira muito peculiar por algumas razões. Dentre estas, posso citar o fato de ser mais conhecida pelo seu passado. Peixeiras, cangaceiros, seca, fome, sertão, miséria. Este fato, claro, surge nas representações artísticas da região, inclusive nas representações fictícias e, principalmente, nas representações de quem não é daqui.
Até aí, tudo bem. Quer dizer, mais ou menos. A impressão de que o Nordeste é uma terra seca, sem potencial, parada no tempo, destruída pela fome e pela falta de água, é uma faceta da xenofobia contra a região e os nordestinos. Mas vamos fingir que está tudo bem, e pular para um terceiro assunto.
Ficção futurista nordestina. Fica evidente que a especulação futurista e a visão estereotipada e/ou xenofóbica do Nordeste não funcionam muito bem juntas; afinal, qual o sentido de tratar do futuro olhando apenas para uma versão incompleta e caricaturesca do passado? Qual o sentido do futuro ser tão somente uma reprodução direta disso? Nenhum, né? Pois é.
Pensando nisso, eu, Alan de Sá e Alec Silva criamos o conceito de “sertãopunk”. Como somos escritores, esse conceito é focado na literatura, mas também inclui todas as outras formas de arte. E o ponto principal do movimento é: falar do Nordeste no futuro do presente, não no futuro do pretérito.
Baseando-se nisso, traçamos as características do sertãopunk. O movimento se pauta nos avanços tecnológicos da região, sobretudo na área da sustentabilidade; em futuros sertãopunk, o Nordeste, emancipado ou não, é centro tecnológico e cultural, onde a tecnologia pode fornecer alto padrão de vida aos seus habitantes. Os processos políticos atuais se desdobram: o coronelismo, que mudou de forma do passado para o presente, veste roupa nova para o futuro. A cultura popular, a oralidade, as religiões e lendas nordestinas marcam presença.
Também tomamos referência em movimentos artísticos já estabelecidos, a saber: o solarpunk, por ser pautado no desenvolvimento tecnológico sustentável, o afrofuturismo, por agregar à arte a ancestralidade da diáspora africana e seus conflitos étnicos e, por fim, o realismo mágico, pois por meio de narrativas maravilhosas (é uma categoria acadêmica, nem eu entendo direito), pode-se agregar os credos e lendas dos nove estados nordestinos.
Em tempo, problemas como a seca, fome e conflitos étnicos, tanto da diáspora africana quanto dos povos originários, ainda existem no presente do Nordeste. É natural que persistam no futuro, mas jamais da forma como ocorreram no passado. A seca numa região com cisternagem, açudagem e transposição de rios se transforma num problema de acesso à agua, por exemplo, algo de natureza bem diferente do que a seca causada pela falta de tecnologia para manejar recursos hídricos.
Combinar, somar, e mexer com todos esses elementos fica a gosto do freguês. “Morte Matada”, a minha noveleta que saiu pela editora que me cedeu esse espaço, é uma ficção científica distópica onde o coronelismo se mistura com capitalismo tardio, e “A Noite Tem Mil Olhos”, do Alec Silva, também publicado pela Editora Corvus, já puxa mais para o horror gore ao tratar do folclore nordestino. “Abrakadabra”, conto independente do Alan de Sá, é uma ficção psicodélica.
No campo das artes visuais, Mariana Teixeira, capista e ilustradora trabalhou o sertãopunk imaginando uma Salvador afrofuturista. A arte, que conta com um texto explicativo organizado por Luidy Ariel Ferreira de Santana, pode ser encontrada no Instagram da artista, disponível aqui.
Dentro dos limites do sertãopunk, as possibilidades de trabalhar o futuro do Nordeste são inúmeras e estão prontas para serem exploradas ainda mais.
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